VINHOS E AGUAS-ARDENTES

Quando entrei no cemiterio, lobriguei, ao fundo, por entre a rama de
alguns cyprestes, que orlavam as ruas transversaes, o coveiro a levantar
as ultimas pazadas de terra de uma valla.

O homem cantarolava assim:

/*
Menina, que está á janella,
A lançar goivos á rua…
*/

E, depois, agachado no cairel, media com o cabo da enxada a profundidade
da cova, proseguindo alegremente:

/*
Se o coveiro aqui passa,
Vae pôr-lh’os na sepultura.
*/

Metteu a pá da enxada na leiva de terra, que lhe ficava ao lado,
transpoz o comoro de outras sepulturas, e parou junto de um esquife
pobre, de pau, sem fôrro, com os symbolos da morte pintados d’amarello.

Arrastou-o com esforço para a bôca da valla, escancarou as tampas; e, ao
dar com o rosto do cadaver, exclamou de si para si:

–Ora espera! Eu conheço esta rapariga!

Entreabriu os labios com a unha do dedo polegar, concentrou-se um
instante a meditar com os olhos fechados; e, por fim, continuou
compadecido:

–Ah! És a Rosita do tecelão!

Á medida que retirava com geitosa piedade o cadaver do esquife,
lamentava:

–Pobre rapariga! Eu logo vi que te não delatavas atraz da filha!

Depois, o resto foi rapido e breve.

Baldeou o cadaver ao fundo da cova, lançou-lhe por cima a terra que
tinha levantado, recalcou bem com os pés juntos os ultimos torrões, e
retirou-se para casa, com a enxada ao hombro!

* * * * *

Ahi vae lêr-se a historia d’essa mulher. A sua vida é a vida trivial de
muitas desgraçadas.

Quando tinha apenas desoito annos, Rosa chorou as primeiras lagrimas do
coração retalhado sobre o cadaver da mãe, que lhe expirou nos braços.

Ficava sósinha no mundo, a viver pobremente do seu trabalho honesto e
incessante, sem uma voz consoladora que a alentasse a arrostar todas as
adversidades, que a sorte lhe havia de deparar.

O grande perigo estava-lhe na peregrina formosura do rosto e na
innocencia do coração, que é a formosura da alma.

Um dia o Benjamim tecelão, um rapaz alegre e bem parecido, que de ha
muito lhe arrentava a porta, disse-lhe que a amava; e, para justificar a
sua declaração, propoz-lhe com voz trémula a sua mão d’esposo.
Mentiu-lhe.

Ao cabo de onze mezes, durante os quaes o tecelão ia inventando embargos
á realisação da sua promessa, a pobre rapariga deu á luz uma filha. As
primeiras alegrias da mãe deram tréguas ao sofrimento do coração
ludibriado. A filha chamava-se Isabel, que era o nome da mãe de Rosa.

Depois, quando as lagrimas lhe rebentavam copiosas, Rosa tomava a
creancinha nos braços, e um sorriso d’ella era-lhe um grato refrigerio
para as amarguras da vida.

O operario entendeu que a filha era um vinculo mais apertado do que a
estola d’um sacerdote. Propoz a vida em commum. Rosa accedeu de prompto,
fiada em que o amor de pae talvez despertasse na consciencia de Benjamim
a ideia do casamento, que a rehabilitasse.

O tecelão, vendo que o trabalho de Rosa bastava ás despezas da casa,
deixou-se ficar uma semana sem ir á fabrica. Quando a ociosidade lhe era
tediosa, ia procurar distracção na taberna mais proxima. Voltou de novo
ao trabalho; mas o seu producto dispendia-o comsigo e com os amigos, ás
mesas das tabernas e ás bancas do jogo, esquecendo-se de Rosa e da
filha. Aconteceu Rosa adoecer da muita fadiga, e pedir algum dinheiro a
Benjamim. Não teve elle coragem de lh’o negar; mas entregou-lh’o de um
modo tão aspero, que offendeu o coração da desventurada mãe.

Foi ahi que principiou o calvario de Rosa!

Benjamim entrava em casa, por altas horas da noite, cambaleante e
obsceno. Atirava quantos insultos lhe lembravam ao rosto da rapariga.
Rosa amparava-o com brandura, soffria-lhe os escarneos com a mais santa
resignação, auxiliava-o a deitar-se; e, depois, quando Benjamim, com os
cabellos em desalinho, o rosto descórado, resomnava, prostrado com o
peso da embriaguez, ella quedava-se a contemplal-o, com as faces
cobertas de lagrimas.

O viço da sua formosura ia pouco a pouco desapparecendo. Já não tinha o
mesmo brilho nos olhos, o mesmo setim na cutis, a mesma ondulação nos
contornos do rosto. As lagrimas deixavam um vestigio indelevel da sua
passagem, e Rosa envelhecia e esfeiava.

Benjamim, ao accordar do dia seguinte ao da embriaguez, sentia-se
enfastiado da presença d’aquella _velha_, e sahia de casa sem lhe
dirigir uma palavra de gratidão e carinho!

De uma vez–tinha Isabel sete annos–o tecelão chegou a casa n’um estado
lastimoso. Dois amigos e consocios de taberna levaram-no nos braços, até
á porta. Benjamim subiu a custo os degraus ingremes da escada; abriu de
repellão a porta da sala, e appareceu hediondo, a tremer, com os olhos
injectados, os labios convulsos, os cabellos empastados de um suor
viscôso. Fez um esforço para se aproximar de Rosa. Estendeu os braços
para se arrimar á parede; abriu as pernas para conservar o equilibrio;
e, ao arriscar vacillante o primeiro passo, cahiu de bruços, com todo o
peso do corpo, sobre o pavimento!

Isabel, que já dormia, acordou sobresaltada com o estrondo da quéda, e
principiou a gritar de medo! Benjamim ergueu-se de golpe, dirigiu-se á
enxerga, em que dormia a filha e espancou brutalmente a pobre creança,
que emmudeceu de terror aos primeiros tratos. Accudiu Rosa, implorando
com altos brados a Benjamim que perdoasse á filha; mas o bebado
respondia ás supplicas da mãe com pancadas e empuxões.

Ao outro dia, a Isabel tinha o corpinho tão macerado, que mal se podia
remover da cama. Rosa levantou-a carinhosamente nos braços, agasalhou-a
n’umas saias de baeta, e, logo que o tecelão sahiu de casa, foi com a
filha ao hospital da Misericordia. O facultativo, que observou a
creança, viu, atravez das lagrimas da mãe, a causa d’aquellas contusões.
A pequenita estava muito doente.

Ao terceiro dia, a filhinha chamou com voz debil pela mãe, pediu-lhe que
se sentasse na enxerga, bem junto d’ella, encostou-lhe a sua loira
cabecinha no regaço, e disse-lhe:

–O pae é muito mau! E a mãe chora tanto! Se eu morrer, hei de pedir a
Nossa Senhora que leve a mãe para junto de mim; quer?

Rosa não respondia, porque os soluços, que lhe estalavam o peito, lhe
embargavam a voz.

A Isabelinha então, já com a vista turva, e a bocca entreaberta, lançou
os braços ao pescoço da mãe, para a achegar mais de si, estremeceu da
derradeira convulsão e… expirou!

Ao cabo de um mez, durante o qual o padecimento de Rosa fôra horrivel, o
mesmo coveiro que enterrou a filha, abriu ao lado outra cova para
receber a mãe.

* * * * *

O rosto d’aquella mulher, magro, livido, macerado, tinha a impressão
indelevel das torturas por que passára. Não havia n’elle as contorsões
da agonia dos delinquentes, que morrem convulsionados pelo terror de um
castigo eterno. O derradeiro alento entreabriu-lhe nos labios um sorriso
de bemaventurança!

É como ficam as creaturas, santificadas pelo martyrio, e que esperam na
morte a hora do seu resgate!

E quem diria–pobre creança!–que tinhas apenas vinte e cinco annos, e
que foste formosa, e que te julgaste feliz no dia em que poisaste pela
vez primeira os labios convulsos de alegria na face côr de rosa de tua
filha!?

E saber-se que o martyriologio é com certeza o unico elogio funebre de
tantas desgraçadas como Rosa!

E Benjamim?

Benjamim, aquelle homem que seduziu impunemente uma mulher e que matou
impunemente a filha, prosegue inflexivel na vida crapulosa, dominado
pelo vicio da embriaguez, em que tem perdido, pouco a pouco, o vigor e a
vida de todas as faculdades, a saude, a honra e a propria dignidade de
um ser humano!

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