A mala-posta, que seguia do Porto para Braga, passava, ás 7 horas da
manhã, defronte da Izabellinha–aldeola obscura, que fica emboscada
n’uma deveza cerrada de carvalheiras, entre Santiago da Cruz e a estrada
de Barcellos.
Como era subida, os cavallos iam a passo, de redeas bambas, com as
cabeças pendentes, saccudindo com as caudas os moscardos teimosos, que
lhes afferretoavam nos ilhaes. Na imperial do tejadilho os passageiros
cabeceavam com somno. O cocheiro, com o chapéo desabado cahido para o
sobr’ôlho esquerdo, por causa do sol, e com as redeas entaladas nos
joelhos, petiscava lume da pederneira e acendia pachorrentamente no
morrão um cigarro de Xabregas.
–Ainda não enxergo o manco–disse o conductor, com os olhos fitos n’um
atalho, que vinha sahir á estrada.
–Toque-lhe a busina, homem–alvitrou do lado o cocheiro, com a voz
rouca da aguardente–toque-lhe a busina; que, se não apparecer, adeus! a
culpa é d’elles.
O conductor limpou com a palma da mão o boccal da corneta, que levava ao
tiracollo, applicou-o aos beiços, inchou as bochechas d’ar, e soprou de
rijo, tirando um som roufenho, prolongado, com intermittencias, que se
ouvia de longe.
O manco, que estava encostado no cunhal do muro, á sombra d’um
castanheiro, sahiu a meio da estrada.
Ao passar a mala-posta, o conductor atirou-lhe d’alto com uma sacca de
brim, surrada, suja e fechada com uma vareta de ferro, em cuja
extremidade pendia um aluquete triangular. O manco estendeu os braços
para a suspender no ar. Assim que a aparou, sopesou-a duas vezes, com os
braços esticados, e observou:
–Hoje pesa!
–Hoje ha paquete–explicou succintamente o conductor.
E, como a estrada principiava a descer n’uma ladeira ingreme, volteou
com força e á pressa a manivella do travão, e disse para o manco:
–Adeus.
A mala-posta seguiu a trote largo pelo meio da estrada, aos solavancos,
levantando nuvens densas de poeira, com grande ruido das rodas, fremito
das vidraças e o tilintar constante dos guisos das colleiras.
O manco atirou para o hombro com a mala das cartas, fincou o braço
concavo da mulêta no sovaco direito, e desandou pelo atalho fóra, a
coxear, para casa do Bento do correio.
Ao fundo do atalho, em continuação do muro tosco dos campos, ficava uma
estacada já velha, combalida, esverdengada das chuvas da invernia a
resguardar uma leira hortada de couves e cebollinho. Tinha dentro uma
casita de telha vã com porta e postigo sem vidraça. Dirigiu-se o manco á
cancella da palliçada, correu-lhe o ferrôlho pêrro na armella, e gritou:
–Ó tia Anna! tia Anna!
Abriu-se a porta da casa, e appareceu no limiar uma velhinha tremula,
curvada para diante, com uma roca enfiada á cinta, a fiar estopa.
–Que é lá, manco?–perguntou ella, inclinando-se para fóra, com a mão
fincada na humbreira.
–Correio!–gritou o manco com um grande berro.
A velha fez-lhe com a mão signal de que esperasse. Poisou dentro a roca
e o fuso, e sahiu á horta ageitando com os dedos as farripas brancas do
cabello, que lhe espreitavam por debaixo do lenço. O rapaz transpoz a
cancella, foi ao encontro da tia Anna, e gritou-lhe com a bocca muito
aberta:
–Correio! ouviu?
A mulher fitou-o com os olhos espantados, e perguntou:
–Que é? Não oiço.
O manco sorriu-se resignado; collando então a bocca ao ouvido da tia
Anna, repetiu com maior brado:
–Correio! correio! ouviu agora?
–Ah!–exclamou a velhinha, esfregando as mãos de jubilo radiante–ouvi,
meu filho, ouvi:–é correio!
–É correio, é–confirmou elle com um aceno affirmativo.
E, pondo-lhe a mão no hombro, disse-lhe adeus até logo, correu de novo o
ferrôlho, e tomou á direita, pelo carreiro de um milharal, caminho do
correio.
* * * * *
Não se imagina o que é a chegada do correio a uma aldeia qualquer do
Minho! Cartas dos filhos ausentes!
Que anciedade em vêr realisadas as esperanças e…
Deixemos estas considerações, e relatemos os factos.
D’aquella mesma porta, vinte annos antes, sahira uma vez a tia Anna,
ainda forte, robusta e sadia, para acompanhar ao Porto o seu querido e
unico filho, que teimou em embarcar para o Brazil. O homem da tia Anna
não se oppoz.
–Deixa-o lá, mulher–disia-lhe elle–se o rapaz tem inclinação, em Deus
o ajudando, melhor amanhará a vida por lá do que por cá. Elle sabe lêr,
elle sabe escrever, elle sabe contas, está mesmo a calhar.
–Ai! meu rico filho–soluçava a pobre mãe, a chorar, com o rosto
escondido no avental.
–Não chores, mulher. Partir, tinha elle de partir, mais hoje, mais
ámanhã. Eu que o mandei ao mestre, não foi para ficar na lavoura. Assim
com’assim tanto monta estar o rapaz n’uma loja no Porto, como no Brazil.
Vem a dar na mesma.
Estas e outras razões do marido venceram as saudades da mãe.
Foi preciso vender dois grilhões e um par d’arrecadas, venderam-se; foi
preciso vender tambem uns novilhos, que se engordavam para embarque,
venderam-se na feira de Villa-Nova; e apuradas sete moedas e meia,
impoz-se o rapaz para o Brazil. No Porto, a tia Anna tomou passagem para
o filho, á prôa, na galera _Constancia_, da casa dos Pennas; mercou-lhe
uma caixa de pinho nova; vestiu-o com dois fatos baratos n’um algibebe
da Ponte-Nova; escolheu-lhe um par de chinellas nas sapateiras das
Carmelitas; guardou-lhe e ageitou-lhe tudo na arca, e poz-lhe a um
canto, com a maior devoção, o registo do Bom Jesus do Monte.
Pobre mulher! Liquidou as parcas economias, que representavam privações
e sacrificios, afadigou-se de trabalho, ralou-se de saudades, chorou
muito; e, quando viu de terra a galera _Constancia_ seguir lentamente
rio abaixo, com as vellas enfunadas pelo nordeste e a prôa inclinada á
barra, cahiu de joelhos e de bruços no caes de Massarellos, com as mãos
tremulas atadas na cabeça, a soluçar afflictivamente pelo filho da sua
alma, que lhe acenava com o lenço, debruçado na amurada do navio, a
chorar!
* * * * *
Chegou a primeira carta a Izabellinha decorridos tres mezes da partida
do rapaz. Foi um alegrão que os paes tiveram! A carta era escripta em
papel paquete, muito fino, pautado; e até como os portos do Brazil
estavam suspeitos de febre amarella, vinha o papel todo golpeado. Foi
lida a carta pelo Bento do correio, foi lida pelo boticario, foi lida
pelo snr. cura, antes de ser delida pelo calôr do seio da mãe, que a
guardava junto do coração, como reliquia; e, de cada vez que ella ouvia
as palavras do filho, era um chorar copioso, que retalhava o coração. O
brazileiro da Granja, que indusira o rapaz a embarcar, esse sorria-se, e
consolava-a d’este modo:
–Deixe lá, tia Anna! Ali é que um home se faz gente. Está aqui, está um
brazilêro como a mim. Lhi garanto, tia Anna, que o rapaz se tiver tento
na boia, hem? arranja pátácária gorda, e, em pouco tempo, átiça baixella
em casa.
Nenhumas d’estas consoladoras esperanças, nem até a de _átiçar baixella
em casa_, leniam as saudades d’aquelle coração attribulado da tia Anna.
–Ora!–oppunha ella com a voz nazal e soluçante de quem suspende as
lagrimas para falar.–Em um homem tendo saude e a graça de Nosso Senhor,
em toda a parte do mundo é Brazil! Riquezas são o demonio.
–Não diga pátácuádas, mulher–contestava o brazileiro azedo e
carrancudo–não diga pátácuádas.
Depois, passados mais annos, á proporção que as saudades da aldeia se
desvaneciam no animo do rapaz, as cartas iam rareando.
De quatro em quatro mezes escrevia para a terra, dizendo que o trabalho
lhe roubava o tempo de o fazer amiudadas vezes. Que não tivessem
cuidado, que ia bem de saude e que esperava ser feliz em poucos annos.
A tia Anna, quando não tinha carta no correio, ia da Izabellinha a
Braga, a pé, entrava no Carmo, ajoelhava á beira da campa do milagroso
Frei Joãosinho da Neiva; e, com as mãos postas em supplica junto da
bocca, implorava com ancioso fervor pela saude e prosperidade do filho
ausente. Ao passar pela caixa das esmollas, á entrada da egreja, lançava
algum dinheiro no gazufilacio. Pedia a Nossa Senhora da Conceição dos
Congregados pelo filho do seu coração. Entrava em Santa Cruz, ajoelhava
em frente do altar do Senhor dos Passos, e rezava uma estação e um
rozario com as faces de rojos; subia a beijar os pés da sagrada imagem;
e benzendo-se tres vezes com a corda d’esparto puido e lustrosa, que
cingia a tunica do Senhor, retirava-se ás recuadas, rezando a meia-voz,
até sahir do templo!
* * * * *
Seis mezes antes do manco annunciar á tia Anna que tinha chegado o
correio, recebeu ella uma carta do filho, dando-lhe parte de que ia
casar com menina rica, de nascimento–dizia elle–prendada. Queria o
retrato dos paes, e enviava-lhes dez moedas para as despezas
necessarias.
Quando isto constou na Izabellinha, houve geral regosijo.
–Eu não lhe dizia, tia Anna–lembrava-lhe uma visinha.–Se eu logo vi!
Aquelle seu Joaquim nunca me enganou. Eu futurei aquillo!
–Pois isso bastava uma pessoa olhar para elle–acudia outra, aleitando
um filhinho gordo, que tinha no regaço–Aquelle ôlho d’elle, lembra-se,
tia Josepha?
–Pois não alembra? O rapaz era fino, que nem um alho! Se aquelle não se
arranjava por lá, então–bôa te vae!–não sei o que ha-de ser d’outros
que foram depois. Olhe vocemecê, tia Anna, aquelle filho da moleira, o
zerôlho; aquillo é um morcão, que não serve para nada.
A tia Anna, sem attentar no confronto, que lhe realçava as qualidades do
filho, ria e chorava simultaneamente. E não se sabia dizer se aquellas
lagrimas serenas illuminavam o sorriso, se o sorriso mais entristecia as
lagrimas!
Dois dias depois da recepção da carta, resolveram-se, ella e o marido, a
ir a Braga para tirarem o retrato. Vestiram-se com a melhor roupa
domingueira, que servia para a romaria do Espirito Santo, no Bom Jesus
do Monte. Ella ia toda sécia de saia escura de serguilha, com tomado e
muitas pregas miudas no coz, collete de chita amarella salpicada de
florinhas verdes, camisa branca de linho com mangas enfunadas e
abotoadas no pulso, meias finas, e sóquinhas de panno azul com ponteiras
de verniz.
Atou na cabeça um lenço branco de cambraia bordado, lançou aos hombros o
capotilho novo de baeta escarlate debruado de fita larga de velludo
preto com as pontas cahidas á frente, até á cintura, e tomou na mão
enrugada e secca um lenço engommado de franja e entremeios de renda.
O marido enfiou as melhores calças de panno, avincadas, com abertura em
baixo a apolainarem o tamanco, collete de fostão amarello com duas
ordens de botões de vidro, niza azul de abas curtas, golla alta, botões
amarellos, as mangas justas de canhão até á raiz dos dedos, e collarinho
muito engommado e teso apontado ao lóbo das orelhas.
Poz na cabeça chapéo de feltro de copa afunilada, e sobraçou o guarda
sol de panninho escarlate com espigão de metal lustroso e um cabo de
ôsso representando um punho, toscamente esculpido nos torneiros da
Bainharia do Porto.
Atravessaram assim o Arco da cidade em Braga; e seguiram pelo meio da
rua do Souto, um ao lado do outro, radiantes, em busca do retratista.
Adiante da galeria do paço episcopal, deparou-se-lhes pendurado na
humbreira de uma porta um quadro grande de caixilho doirado com muitas
photographias em exhibição.
Perguntaram na loja de pannos, que havia ao lado, onde se tiravam os
retratos; e, devidamente encaminhados, subiram ao segundo andar, onde
ficava o _atelier_.
O photographo retratou-os em grupo, um junto do outro, ambos de pé, o
marido com a mão direita espalmada assente sobre a espadoa descahida da
mulher.
Ficaram com as cabeças muíto levantadas, os olhos arregalados e
espantadiços, os beiços franzidos, os membros hirtos e constrangidos,
n’uma attitude lôrpa, grotesca e ridicula!
* * * * *
Logo que o manco partiu, a tia Anna seguiu-lhe no encalço para procurar
carta do filho.
No dia em que chegava a mala do Brazil, iam as mulheres da Izabellinha
pedir ao Thomé boticario, que deixasse ir o filho ao correio para lhes
lêr as cartas.
Se não havia freguezes a aviar, o pae mandava-o, e o Andrésinho partia
alegre, porque gostava da brincadeira.
Era lindo vêr aquelle quadro!
O rapaz sentava-se no espigão d’um muro baixo, á sombra d’um sobreiro.
Em volta d’elle, mulheres e homens apinhados, com as bôccas abertas,
escutavam-no com religioso silencio.
O filho do boticario ia lendo uma por uma, muito vagarosamente, as
cartas que lhe entregavam.
Não havia segredos para ninguem.
Como o rapaz lia d’alto e bom som ouviam todos as cartas uns dos outros,
como se fossem uma só familia. E alguma noticia triste ou noticia alegre
era egualmente sentida e commentada por todo o auditorio.
A tia Anna, como já lhe custava a andar, chegava no fim de todas.
Cediam-lhe logo passagem.
–Deixae, que eu tenho tempo–dizia ella, com a carta do filho apertada
na mão.
Por fim, chegou-lhe a sua vez.
O filho accusava a recepção dos retratos, mas dizia que não tinha
gostado. A tia Anna entristeceu.
A carta proseguia no mesmo assumpto e terminava assim:
«Vão vocemecês a casa do meu correspondente, os srs. Nogueira & Sá, da
rua das Flôres, e perguntem pelo meu amigo e socio Joaquim da Silva
Ferreira, que lhes dará as instrucções precisas».
O André, depois de lêr, explicava sempre:
–Percebeu, tia Anna? Quer que vocemecê e o seu homem vão ao Porto, á
rua das Flôres, a casa dos srs. (e recorria á carta), dos srs…
Nogueira & Sá, e lá procurem o sr…, o sr… (recorria de novo ao
papel) Joaquim Ferreira da Silva, que, pelos modos, vem a ser o socio do
seu José. Percebeu?
–Percebi, percebi.
–Pois é o que teem a fazer; e adeusinho, até outra vez.
O rapaz restituiu a carta; e, como não havia mais ninguem por ali,
saltou do muro, e voltou para a botica.
* * * * *
Na loja de ferragens da firma commercial Nogueira & Sá, estavam, havia
cerca de uma hora, a tia Anna da Izabellinha e o marido á espera do
socio do filho, que os mandára esperar ali.
Era meio-dia, quando o brazileiro entrou.
O patrão Nogueira apresentou-os ao recem-chegado. A tia Anna e o homem
levantaram-se humildes, com os braços cahidos, conturbados
d’acanhamento.
–Então são vocemecês os paes do meu socio, hein?
–Saiba v. s.^a que sim–responderam ambos em côro.
–Pois por muitos annos, e bons–disse-lhes o brazileiro.
Tirou da algibeira do collete branco um relogio d’oiro, viu as horas, e
voltando-se para o Nogueira:
–São horas. Tem lá cima tudo preparado, hein?
–Está tudo prompto–respondeu o ferragista.
O Silva voltou-se para os lavradores, e disse-lhes:
–Subam lá cima com este senhor, que eu espero-os aqui. Não si démorem,
hein?
A tia Anna seguida do homem subiram a uma sala do primeiro andar. Sobre
um canapé de palhinha estava estendido um casaco preto, um par de
calças, um par de botas e um chapéo alto de seda. Ao lado havia um
vestido de seda preta com folhos, um chale de cachemira, uns sapatos de
duraque, um chapéo de velludo carmezim com flores amarellas e plumas
brancas.
Entrou na sala uma criada velha das manas do Nogueira, tomou nos braços
o vestido de seda, o chapéo, o chale e os sapatos, e pediu á tia Anna
que a seguisse ao gabinete proximo.
O caixeiro da loja ficou só com o lavrador. Disse-lhe que mudasse o fato
d’aldeão que trajava e o substituisse por aquelle que via ali.
–Mas… oppoz timidamente o pobre do homem.
–Eu ajudo-o, eu ajudo-o. Ande depressa.
E, á pressa, atabalhoadamente, tirou-lhe a niza, o collete amarello e as
calças de saragoça.
Quando o homem se sentou n’uma cadeira para enfiar o canno das botas,
cahiam-lhe da testa bagas de suor copioso.
Estava afflicto, quasi apopletico, com o laço da gravata a apertar-lhe a
garganta, como a corda d’um enforcado.
Aquelle casaco pesava-lhe nos hombros como uma armadura d’aço de D. João
II.
Abriu-se a porta do gabinete e appareceu a tia Anna vestida de senhora.
Oh! Os pés estorciam-se-lhes nos sapatos, o chapéo cahia-lhe para a
nuca! A criada vinha atraz, a passo, como aia que segue uma rainha; e,
lançando um olhar e sorriso maliciosos ao caixeiro, dizia:
–Hein? Estão que nem dois fidalgos!
Marido e mulher empallideceram e tremeram quando se viram n’aquelles
trajes. Despertou-lhes na consciencia o sentimento do ridiculo.
Entreolharam-se mudos, contrafeitos, e desceram ambos, com muito custo,
amparados ao corrimão, os degraus da escada até á loja.
E a criada e o caixeiro, que os viam do patamar, abafavam com a mão na
bôcca as gargalhadas da troça.
–Ai o diacho da velha–exclamava a creada a rir–que me parece mesmo um
entrudo!
* * * * *
Entraram ambos na photographia _Fritz_, da rua do Almada.
O socio do filho explicou ao retratista como desejava o grupo.
Passaram ao _atelier_, muito desconfiados, a olharem-se de soslaio.
O homem bofava, a suar constantemente.
Foram colocados no fóco, um ao pé do outro, com uma meza de permeio, e
por detraz com um reposteiro azul, que cahia em amplas dobras sobre o
tapete. Quando o photographo assestou sobre elles a lente da machina,
retirou de repente a cabeça de sob o panno de velludo preto que o
cobria, e observou espantado:
–Então vocemecês estão a chorar?!
Enxugaram os olhos á pressa, e collocaram-se na mesma posição.
Á segunda tentativa, porém, as lagrimas e os soluços irromperam
violentos; e o homem da tia Anna, afastando-se da meza, dirigiu-se ao
socio do filho, e expoz-lhe, a chorar:
–Com’assim, meu senhor, nós não tiramos o retrato. E, enxugando as
lagrimas ao canhão do casaco, continuou:
–Nada; escreva v. s.^a ao meu José, e diga-lhe que não senhor, que…
não pode ser!… Se elle não quer mostrar á senhora o retrato que lhe
mandamos, é o mesmo, que diga… que já não tem pae, nem mãe!
Aqui foi um soluçar afflictivo e um abanar convulsivo de cabeça, que
deixou estarrecido o brazileiro.
A tia Anna concordava com o marido:
–Diga-lhe, meu senhor, que nós–dizia ella com voz tremula–que…
morremos, sim que já morremos… ambos!
* * * * *
Na tarde d’esse mesmo dia, quando os ultimos raios do sol poente
purpurisavam a cumiada das montanhas, e pelos respaldos dos outeiros
vinham descendo as sombras esfumadas do crepusculo, voltavam ambos para
a Izabellinha.
Sentavam-se repetidas vezes na orla do caminho, a fingir que a distancia
os fatigava! Permaneciam silenciosos durante alguns minutos, um ao lado
do outro, com os olhos esmorecidos e roxos de chorar.
Mas o homem, quando via rebentar as lagrimas nos olhos da mulher,
fazia-se forte, continha a commoção, e dizia-lhe baixo, a sorrir
contrafeito, acotovellando-a d’esguelha:
–Então, ó Anna! Ai! que já não tenho companheira para as romarias!
E era triste vêr então aquelles dois velhos seguirem para a sua aldeia,
a pé, cabisbaixos, a suspirarem de quando em quando, com o coração
retalhado pela mais cruel das decepções!