O ABANDONO DO MOINHO

Á porta da azenha estava o macho íntonso, preso pelo cabresto a uma
argolla da parede.

Emquanto o não carregavam voltava melancolicamente a cabeça para o lado,
estendia o pescoço lanudo, e ia tosando uma moita de silvas, que murava
o atalho.

De entre o ruido trémulo da mó e o marulho da levada, caindo do cubo nas
pennas do rodisio, em baixo, ouvia-se gritar lá dentro:

–Anda d’ahi, que são horas. Avia-te.

Depois, appareceu á porta o moleiro, com o chapéo enfarinhado caído para
o hombro esquerdo, segurando no hombro direito o taleigo da fornada.
Vinha ainda a gritar:

–Despacha-te, rapariga. Mexe-te, filha.

E atirou com o folle para cima da besta. A moça veio depois, e
carregou-a com um folle do outro lado. Atiraram-lhe em seguida a cilha
para cima; e o moleiro com o joelho fincado na barriga do macho,
principiou a apertar a carga, torneando o arrocho com esforço.

–Prompto! Põe-te já a caminho, que eu não me delato, Therezinha.

Apenas se julgou fóra do alcance da vista do pae, que se deixou ficar á
porta, com uma perna cruzada sobre a outra, o chapéo braguez derrubado
para os olhos, a vel-a subir a encosta, a rapariga saltou para cima do
macho, ageitou-se no meio dos taleigos, e continuou pelo atalho acima, a
cantar:

/*
Ao passar hoje no rio
Vi nas aguas o teu rosto;
Cuidei que ias na levada…
Ai! coração que desgosto!

E ao vêr o teu rosto ali
(O que são coisas do mundo!)
Cuidei logo que uma estrella
Tivesse cahido ao fundo.
*/

O moleiro voltou para dentro, a prover a moega de grão; enfiou depois a
jaqueta de cotim axadrezado, calçou as sapatas ferradas, que tinha a um
canto, fechou por fóra a porta da azenha, arrecadou a chave, e abalou na
piugada da filha.

Assim que chegou a meio do atalho, cortou á esquerda por uma quelha
pedregosa, atravessou por um carreiro, que costeava uma bouça; e,
fincando as mãos no muro tosco de rebos, saltou de um pulo para o meio
da estrada.

Corriam os primeiros dias de março.

Como tinha descampado, havia pouco tempo, os caminhos estavam
lamacentos, sulcados pelas rodas dos carros; e nas terras baixas viam-se
ainda as aguas da chuva empoçadas e cobertas de limo. O céo era de um
azul crystalino, a atmosphera muito limpida; e, ao meio dia, quando o
sol cahia d’alto nos prados, até parece que as rôxas previncas, as
flôres amarellas do trevo e as margaridas, retraíam as corollas ao peso
abafadiço do calor! Nos ramos folhudos dos carvalhos e dos pecegueiros,
que já floreciam, os melros assobiavam alegres, e no fundo azul do
firmamento destacavam-se duas borboletas brancas que voavam d’entre os
silvados, subindo, subindo sempre, a tremer, n’um raio de sol doirado!
Oh! era encantador!

O moleiro apenas escalou o muro tosco da bouça, parou um instante,
collocando a mão sobre os olhos, como uma palla, para vêr se lobrigava a
filha. A distancia de trinta metros a estrada volteava para a direita.
Uma copada deveza de sobreiros, ao fundo, não o deixava enxergar para
além. Por isso, foi continuando por ali fóra, apertando mais o passo,
com os braços bamboleantes e a esbofar de calor.

D’um lado e d’outro, nos campos, fazia-se a lavoura. Duas juntas de bois
castanhos, aguilhoados pelo lavrador, tiravam lentamente o arado, que ia
levantando e revolvendo a leiva. Áquem e além, no declive do monte,
d’entre a verdura tenra da enfesta, alvejavam as frontarias caiadas
d’alguns casalejos, batidos do sol do meio dia. Era um calor de rachar!

D’um atalho, que ia dar á egreja, surgiu o sr. abbade montado na sua
egua, oh! uma boa egua d’abbade, gorda, pacifica e mansa que nem uma
ovelha. Sua reverencia vinha abrigado por um enorme guarda-sol de
panninho azul, e o seu ventre redondo e farto oscillava pachorrentamente
ao chouto pesado da cavalgadura.

–Ó José moleiro,–chamou elle com voz de papo.–Eh! homem! Tu vaes á
cata dos francezes?

O moleiro descobriu-se respeitosamente, e, enxugando o suor da testa á
manga da vestia, respondeu-lhe:

–Vou vêr se topo a minha Thereza, que foi levar a fornada da outra
banda, a casa da morgada.

O abbade, do alto da egua, continuou:

–Vi-a hontem; e olha que está féra e bonita.

–Escorreitinha é ella, graças a Deus,–disse o José, seguindo ao lado o
passo da cavalgadura.

–E é moça de tino,–proseguiu o padre circumspectamente,–mas tem-me
cuidado n’ella, que olha o demo, José, quando as arma, escolhe sempre do
melhor, ouviste?

Mais adiante, ao passarem por um quinchoso, a cujo muro estava debruçada
uma rapariga esguedelhada, com os braços pendentes para fóra,
perguntou-lhe o abbade:

–Que é de teu pae, ó cachópa?

–Está a trabalhar nas obras do rio, sr. abbade,–respondeu ella
córando.

O abbade esporeou a egua, e disse para si:

–Elle é bem melhor ganhar o pão ao pé da porta, lá isso não tem duvida.

–Pois quant’é!–concordou o moleiro, acenando affirmativamente a
cabeça.

E continuaram ambos pela estrada, até a uma cangosta, por onde o abbade
metteu, deixando só o José moleiro.

O caminho agora descia, até ao rio, onde andavam as obras da ponte nova.
Já de longe se avistavam os trabalhadores.

Havia ali um grande movimento de gente. Por entre o tronco nú dos
salgueiros, viam-se já as primeiras pedras do arco, subindo pelo
_simples_ de madeira, que se levantava d’uma á outra margem.

Uma fileira de mulheres e creanças passavam constantemente da draga do
areial com cestos carregados á cabeça. Antes de chegar ao rio, a estrada
apparecia toda coberta de cascalho, que reluzia á luz intensa do
meio-dia.

Como as aguas tinham diminuido, uma barca com linguetas levadiças á prôa
e á pôpa, que servia de transporte, como uma jangada, no inverno, estava
da outra banda, presa por amarras aos troncos de dois amieiros. As
pessoas que tinham de atravessar o rio iam pelas alpondras desanegadas;
mas quando acontecia apparecer uma cavalgadura, então era preciso que os
trabalhadores lançassem sobre as pedras duas pranchas largas, que
serviam de passadiço.

Quando a filha do moleiro chegou ao rio e ia a metter o macho na agua,
um dos homens, que ali estava, gritou-lhe:

–Não mettas o burro á agua, rapariga; olha que te afogas e mais elle.
Espera que eu lá vou.

A rapariga soffreou o macho e esperou.

Ao aproximar-se o homem com a prancha de pinho levantada ao alto, o
macho espantou-se, empinou as orelhas, recuou de subito e, de um salto,
atirou comsigo e com a rapariga ao rio.

O trabalhador, que viu aquillo, principiou a gritar por socorro.
Accudiram os outros; mas, quando chegaram, o macho tinha seguido para o
meio, onde a corrente do rio era mais impetuosa e fazia redemoinho. A
filha do moleiro caíu para o lado, estonteada do sobresalto e da
sensação do frio; e os homens que lhe gritaram de terra viam-na seguir a
cavalgadura com a mão presa na extremidade do cabresto.

N’esse momento, um homem que corria, muito afflicto, pela vereda abaixo,
logo que chegou á margem, atirou com o chapéo para a banda, e lançou-se
de repente ao rio; mas apenas a agua lhe bateu pelo tronco, estremeceu
todo, bracejou um instante e appareceu estirado á flôr da agua, a boiar,
com as faces rôxas da congestão.

* * * * *

Quando ia vêr as obras do rio–era esse o meu divertimento–façam ideia
como eu fiquei!

Sobre uma escada de mão, trazida como uma padiola por quatro robustos
trabalhadores do rio, vinha estendido de costas o pobre José moleiro,
com a bocca entre-aberta, os olhos vidrados e os labios rôxos.

Mais adiante, a dez passos, no meio da agglomeração curiosa de homens,
de mulheres e de creanças, que commentavam e lamentavam o caso, descobri
a desgraçada Therezinha, morta, deitada sobre a terra, com a saia de
chita collada ao corpo pelo peso da agua, deixando vêr o contorno
juvenil dos seus membros inteiriçados.

Ao lado, o macho, a escorrer, com a cabeça pendida e os grandes olhos
fitos no chão, estava n’aquelle doloroso abatimento, em que deve
precisamente ficar um homem, depois de se lhe ter disparado a espingarda
contra o peito de um amigo!

E até parece que, diante d’aquelle quadro funebre, os salgueiros do rio,
debruçando-se melancholicos sobre as aguas, entoavam, balouçados pela
aragem, uma vaga lamentação de tristeza!

* * * * *

Ao passar, alta noite, pelo atalho da azenha, ouvia-se lá dentro o ruido
trémulo da mó, o marulho triste da levada; e, como fazia um luar de
primavera, vi destacar-se claramente no fundo azul do céo, agachada
sobre o esgalho nodoso de uma figueira, que ficava ao lado–em vez do
alegre rouxinol, que ali cantava todas as noites–uma coruja muito
grande, a piar, a piar…

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