ESTÁ NO CÉO!

Um sargento de atiradores, que, desde a madrugada, tinha percorrido oito
leguas, a pé, sem descançar, entrou n’uma taberna que ficava á beira da
estrada, e perguntou se era por ali que morava Maria La Courdaye.

O taberneiro descobriu-se respeitosamente deante do soldado, e, saindo á
porta, estendeu o braço, e indicou-lhe:

–É ali, do lado direito. Abra uma cancella e entre.

–Obrigado! Boa noite–agradeceu o militar. E dirigiu-se apressadamente
para lá.

* * * * *

No muro da estrada havia uma cancella de pau; e aberta a cancella,
atravessando-se por um caminho assombreado de algumas arvores
frondentes, via-se ao fundo a modesta casinha branca, escondida entre a
verde ramaria de uns carvalhos.

Tinha ao lado uma leirita plantada de horta; e, á sombra de um choupo,
mais no fundo, uma pia de pedra, onde murmurava uma veia de agua muito
crystalina. Do esgalho de uma arvore prendia-se ao tronco de outra uma
corda, estendidas na qual alvejavam, expostas á luz perpendicular do sol
do meio-dia, umas roupinhas brancas de creança. No cunhal da casa havia
uma parreira, que subia encostada á parede, com as suas largas folhas de
um verde accentuado d’entre as quaes pendiam os cachos escuros com os
bagos cobertos de pó luzente e subtil das estradas. Da chaminé
desenrolava-se serenamente uma espiral branca de fumo, que se expandia
pelo ar. A casinha branca, de um só andar, apparecia encastoada no fundo
escuro de uma collina. E no cabeço do outeiro, a espessura immovel e
macia de um pinheiral fechava o horisonte, como um largo reposteiro de
velludo verde.

N’essa casa vivia uma formosa mulher na companhia de dois filhos.

Coitadita da pobre! Ficava viuva aos vinte e cinco annos e com dois
filhinhos que eram o seu encanto. O mais velho tinha sete annos e
chamava-se Miguel, que era o nome do pae; o mais pequenino contava
apenas onze mezes, e tinha nascido pouco depois que o pae partiu para a
terrivel guerra da Criméa.

De uma vez, depois de cearem, a mãe, para que o Miguel não fizesse bulha
e acordasse o _menino_, chamou-o para ao pé de si, abriu a carta
geographica, e disse-lhe:

–Olha, meu filho, onde está o teu querido papá?

O pequenino abriu muito os olhos, e respondeu a sorrir:

–Na guerra! Pum! Pum!

–Anda vêr onde elle está.

E, pegando-lhe na mãosinha, fechou-lhe os trez dedos mais pequenos,
estendeu-lhe o indicador, e foi-lh’o levando por todas as terras por
onde o pae tinha seguido. O dedo da creança ia subindo montanhas,
descendo aos valles, atravessando as planicies, costeando pelo litoral e
cortando o mar. O pequeno balbuciava todos os nomes que a mãe proferia.
Quando chegou á Criméa parou. Ergueu a sua cabecinha loura, e levantou
os olhos para a luz do candieiro, a vêr se elle lhe fazia a mercê de o
alumiar bem. Depois levou a mão ao _abat-jour_ e tirou-o para o lado.

–Deixa o candieiro, meu filho.

–Ora, ora–exclamou o Miguel, fazendo biquinho.

–Deixa, meu filho–pedia a mãe.

–Eu quero vêr o papá.

E debruçou-se outra vez sobre a carta, a procurar com o olhar
investigador um ponto qualquer.

A mãe, n’esse instante, com o mais novinho adormecido nos braços, olhou
para o crucifixo, que tinha pendurado á cabeceira, e principiou a rezar
baixinho, com duas grossas lagrimas a tremerem-lhe á flôr das palpebras.

–Está aqui o papá?–perguntou o Miguel.

–Está, meu filho, está.

–Na guerra?

–Sim, meu rico amor, na guerra.

O Miguel ficou pasmado a olhar para a Criméa, e exclamou:

–Eu quero ir á guerra dar um beijo ao papá.

–Oh! meu filho!

–O que é a guerra, mamã?

–Não sei, Miguel. O teu papá, quando vier ha de contar-nos, sim?

No dia seguinte, logo depois da ceia, quando o _menino_ já dormia no
regaço da mãe, o Miguel pediu:

–Eu quero ver outra vez o papá.

E foi procurando, pouco a pouco, pelo mappa. Assim que apontou a Criméa,
exclamou radiante:

–Ah! aqui está elle!

E depois, no outro dia, logo á bocca da noite, bateram apressadamente á
porta. Quem seria, Jesus! A mãe do Miguel até tremeu. Pegou na
creancinha e foi vêr quem era. O Miguel–aquillo era já um homem ás
direitas!–ía ao lado da mãe, segurando-se-lhe a uma das prégas do
vestido.

–Ha-de ser o papá–disse elle.

Abriu-se a porta, e no fundo estrellado da noite, sobresaiu a elevada
corpolencia de um soldado. A claridade do luar batia-lhe em cheio no
rosto avincado da fadiga e queimado do sol, com grandes bigodes
espessos. Os botões da fardeta reluziam.

–É aqui que móra a sr.^a Maria La Courdaye?–perguntou elle, enxugando
ao canhão o suor copioso que lhe escorria na testa.

–Sou eu–respondeu a mãe de Miguel.

–É a mulher do Miguel La Courdaye?

–É o papá–disse do lado o pequenito, fitando o soldado com os seus
grandes olhos azues.

–Pois, senhora…

O soldado olhou em redor, peturbado, afflicto, e continuou:

–Pois o Miguel, o 26 dos atiradores, o meu querido e bravo camarada…

–Hein?–balbuciou a pobre mulher.

O sargento apontou com o indicador para o céo, e, approximando-se da
porta, terminou:

–Morreu!

E deitou a correr pela estrada fóra, porque não tinha coragem de
assistir áquelle lance angustioso. Não tinha animo, elle, que no calor
da refrega, affrontára os maiores perigos!

Depois da ceia, o Miguel quiz ainda ver o seu papá. Abriu o mappa, e
quando chegou á Criméa, disse:

–Eh! aqui está elle!

–Já não está, meu filho–respondeu-lhe a mãe a chorar.

O pequenito olhou para ella, e perguntou:

–Então?

–Está no céo!

–Está no… céo? Então vou procurar o céo.

E ficou, por muito tempo, debruçado sobre o mappa, a procurar onde
ficaria o céo para ver o seu papá, até que deixou pender a sua loira
cabecinha sobre o livro, e adormeceu.

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