ÁS CEREJAS

Bateram as tres badaladas do meio dia na torre de Santa Eufemia. Os
rapasinhos, que frequentavam a aula regia do José Sabino, começaram a
sahir, com as lousas pendentes do pescoço e os livros debaixo do braço.
O mestre escola esteve um instante á porta, a recommendar-lhes, com tom
de voz ameaçador:

–Ora olhae agora se ides direitos e quêdos para casa, se não…

E agitava na mão pennujenta o junco punidor.

Emquanto o olhar austero do mestre os alcançava, bem iam elles, todos
muito direitos, dois a dois, de mãos dadas, como uma leva de degredados;
mas, apenas o caminho voltava para a direita, e entre o mestre e os
discipulos ficava uma sebe muito alta e espessa, que os abrigava, adeus!
corria tudo em debandada, como abelhas que irrompem d’um cortiço!

Eu, então, gostava immenso de ver a pequenada assim, a correr, a saltar,
a rir ás gargalhadas, escalando os muros, invadindo os campos, como uma
horda de vandalos terriveis. Só me custava ver, no tempo defeso, quando
elles trepavam pelos castanheiros, para ir lá cima roubar entre os ramos
as ninhadas dos passarinhos.

Assim que chegava o mez do S. João aquella enorme figueira do passal
apparecia toda carregada. E os ramos que ficavam eminentes sobre o
cunhal do muro, até vergavam para fóra, para o lado do atalho, com o
peso dos figos!

Era um fartote para os pequenos!

O mais dextro marinhava pelas fendas do muro, escachava-se n’um galho
mais consistente da arvore, e de lá ia atirando para baixo os figos
maduros, a que podia chegar.

E o bonito era ver o abbade, o bom velho do abbade, que desatava a rir
muito satisfeito, quando a criada lhe referia indignada o assalto dos
pequenos.

–Coitaditos!–dizia elle–Ó Anna, quem me cassára a mim no tempo em que
eu fazia o mesmo ás macieiras do parocho da minha terra!

De uma vez que os surprehendi na figueira do passal, lembrei-me com
saudade de um assalto que eu dei tambem–vae isso ha um bom par
d’annos!–a uma cerejeira…

Eu conto a historia:

* * * * *

Já me pennujava o buço; e como tinha a vida menos canceirosa e o sangue
na guelra, dei em frequentar os theatros e em lêr romances! Foi a minha
perdição! Por um capricho da sorte, quasi todos os romances falavam de
janotas que se perdiam de amor por actrizes. De uma vez até se me
deparou um dialogo entre Alexandre Dumas e outro escriptor francez.
Dizia assim:

–Parece incrivel, Alexandre, que em Pariz andem cincoenta rapazes
doidos d’amor por actrizes.

–Parece incrivel–oppôz o Papá Dumas, que era peccadoraço vezeiro
n’este particular–que haja cincoenta que o não estejam!

Vão lá dizer-nos que tudo aquillo é ficção!

A gente principia a lêr romances e tem logo vontade de realisar na vida
o que elles nos referem. Todos queremos ser Antonys, Werthers, Camors,
Armandos…

Nos bastidores do theatro Baquet levantei eu o altar para o sacrificio
do meu coração. Principiei a entabolar relações com os actores
comicos,–que a gente se persuade estão sempre a rir, e que, por via de
regra, são os mais sorumbaticos cá por fóra,–depois com os tyrannos e
os galãs. Era isto indispensavel a um noviço, que, mais tarde, tivesse
de cahir apaixonado aos pés mimosos de qualquer actriz sentimental.

Eu então tinha gosto e geito para o namoro–diziam-me os amigos! E esta
fama veio de me ouvirem improvisar um madrigal á mais gentil e talentosa
actriz d’esse tempo.

Estava eu á porta do camarim do Dias, que tem um filho chamado Josué.
Como durante o espectaculo a actriz não tivesse correspondido á
impertinencia dos meus olhares frechados por um binoculo, quando ella
passou, voltei-lhe as costas e não a cumprimentei. Vejam que despeito!

Chegou-se ella ao pequenito, acariciou-o, e disse-lhe, a sorrir:

–Tu não voltas a cara á gente, não Josué?

E fitou-me com ar insinuante.

–Este Josué–accudi eu, soprando uma espiral de fumo do
charuto–parece-se agora com o Josué da Biblia.

–Porquê?–perguntou Dias.

–Faz parar o sol!

Explendido!

D’ahi por diante, uns sujeitos que hoje são mais felizes e mais tolos do
que eu, vinham pedir-me phrases para elles improvisarem á passagem das
requestadas.

Chegou de uma vez, em meado de abril, uma companhia de zarzuella.

Ás primeiras damas não falava eu. Qual! Essas, via-as eu passar pelo
braço d’uns figurões de bigodes espessos e suissas grisalhas, cabellos
lustrosos puxados para as temporas, com ares serios e graves de
diplomatas.

Eu só conhecia as comparsas, as que faziam de soldados rasos na
_Marina_, de nymphas no _Joven Telemaco_, de camponezas na _Catalina_, e
que no _Relampago_ dançavam o tango, vestidas d’encarnado, com os rostos
farruscados a fingirem pretos!

D’entre ellas havia uma, a Consuelo, que era muito formosa, muito
elegante, e que eu preferia ás outras. Ainda me parece que a vejo,
quando ella passava no meio dos adoradôres, saracoteando os quadris, o
peito ancho, o tronco descahido para traz, na cintura, e a cabeça
levantada e oscillante, como a cabeça esbelta d’um cavallo andaluz.
Tinha os olhos pretos, humidos e azougados, que é como o povo diz d’uns
olhos que teem a sclerotica levemente azulada, os labios côr de cereja,
um pescôço de garça, como o dos retratos da Marie Antoinette, e um pé
tão pequenino, gracioso e arqueado, que inspirava desejos de lhe dizer
com o nosso Padre Manoel Bernardes: «Dá-me limpeza grande nos meus
labios para calçar teus pésinhos de mil osculos santos!»

Ás vezes, tinha momentos de uma tal melancolia, de tão profunda magua,
que me deu vontade de lhe saber a causa. Encontrei-a uma noite de
beneficio, sósinha, a cantar a meia voz esta seguidilha:

En un ameno bosque
Mi niña duerme,
Cuidado, pajarillos,
No se despierte.
Decid al viento
Que mientras ella duerme,
Que sople quedo.

E ficou depois muito triste, encostada á porta do camarim, com os olhos
fitos no bico de gaz, que se abria trémulo como o leque febril d’uma
hespanhola. Tanto indaguei e com tão sincera simpathia o motivo
d’aquella tristeza, que cheguei a sabel-o um dia.

Coitadinha! Consuelo era filha d’uns saltimbancos. A mãe–que já tinha
morrido–dançava na corda bamba, o pae fazia jogos malabares,
prestidigitação, sabia lêr a _buena-dicha_ e era um tenor excellente em
barracões de feira. Uma irmãsita mais nova, a Conchita–oh! que
linda!–essa dançava boleros e fandangos, no meio das praças publicas,
sobre um tapete esfarrapado, ao som de um tambôr, que o pae rufava para
attrahir a multidão.

A Consuelo, com as mãos fincadas nos quadris, a cabeça levantada, e a
sorrir, cantava malagueñas, emquanto o pae agitava uma pandeireta
byscaia com soalhas de latão!

Como era bonita não lhe faltavam galanteios e bravos.

–_Alza_–_Olé! olé!_ gritavam os espectadores, batendo as
palmas–_Alza_, Consuelo!

Logo depois que a mãe morreu, principiou a ir lá por casa, emquanto o
saltimbanco estava na taberna, uma velha esqualida a induzir a Consuelo
que fugisse ao pae e que fosse para uma companhia de zarzuella, que um
emprezario rico ia organizar. Tanto a velha lhe prégou, e sempre com
prendas, com ramos de violetas e _Que guapa que és_! _Caramba_! _que
serás feliz_! que a pobre rapariga, uma fria manhã de nevoeiro,
levantou-se da cama, foi, pé ante pé, beijar a Conchita, que ainda
dormia, e fugiu!

Vejam que desgraça!

Afinal, de terra em terra, de desillusão em desillusão, sem um raio
benefico de esperança, que lhe fulgurasse na negrura da sorte, veio a
Consuelo parar a Portugal!

–Hoje–disse-me ella–não me contentava o oiro, nem as palmas, nem
nada! Trocaria tudo, por vêr meu pae e a minha Conchita!

E a voz trémula embargou-se-lhe na garganta suffocada pelas lagrimas!

–Mas que canção é essa que a faz entristecer?–perguntei eu.

Era uma canção popular, com que a mãe da Consuelo embalava nos braços a
Conchita, quando era ainda muito pequenina:

En un ameno bosque
Mi niña duerme,
Cuidado, pajarillos,
No se despierte.

Antes tres dias de partir a companhia para Sevilha, eu e uns amígos
offerecemos a Consuelo um jantar, no campo, debaixo d’uma ramada.

Era pelos ultimos dias de maio.

Tinhamos partido de madrugada, emquanto as gottas do orvalho tremeluziam
nas encostas floridas, para fugirmos ao calôr intenso do meio-dia.

A verdura tenra dos prados ondulava serenamente á mercê da viração
fresca da manhã.

Quando a estrada costeava o sopé d’uma colina, nós saltavamos da
carruagem e seguiamos então a pé, cortando a eito pelos atalhos,
atravessando por meio de campos de milho e de extensos trigaes,
abrigados pela sombra das carvalheiras, onde chilreavam os pintasilgos e
rouxinoes.

Ás portas dos curraes encontravamos ainda as vaccas sahindo pausadamente
para o pascigo. Na residencia do sr. abbade via-se o muro do passal
coberto de trepadeiras; e por baixo do peitoril d’uma janella, n’uma
gaiola de canna pendurada na parede, assobiava um melro.

Consuelo ia encantada!

O ar fresco, puro e sadio do campo abria-lhe appetites selvagens e
contraditorios.

Ás vezes desejava ser como o boi manso, que vae pastando
tranquillamente, n’um bosque, á beira d’agua corredia; outras, então,
queria antes ser como a pôtra que se avistava, ao longe, n’um extenso
prado, correndo, com as crinas esparsas, aos pulos, sobre os giestaes
floridos!

Ao passar pelos silvados, Consuelo colhia as amoras maduras, e comi-as
com soffreguidão.

Ao cabo de um quarto de hora de caminhada, avistou Consuelo, no fundo
d’uma ladeira, que descia para um pomar, uma cerejeira carregada de
fructo.

–Cerejas!–exclamou ella.–Ai! eu quero cerejas!

Descemos todos ao pomar; e então eu, que era o mais aldeão, trepei pela
arvore acima, até aos ramos mais altos.

Consuelo ficou em baixo para aparar as cerejas. Os primeiros dois pés
que eu lhe lancei, collocou-os ella sobre o pavilhão dos ouvidos, como
dois brincos. Ficavam-lhe como duas contas enormes de coral! Em seguida
apanhou na ponta dos dedos a roda do vestido, á frente, e disse-me que
atirasse para ali as cerejas que fosse colhendo.

–Lá vae, Consuelo!–gritava eu de cima!

–Venham–dizia ella.

E, fechando os olhos, retezava e repuxava o vestido para as aparar ali
todas.

Já Consuelo tinha uma bôa regaçada, quando, de repente, ouvimos, ao
longe, uma voz trémula, que cantava assim:

En un ameno bosque
Mi niña duerme;
Cuidado, pajarillos,
No se despierte.

Consuelo foi deixando, pouco a pouco e quasi insensivelmente, cahir o
vestido, cahir as cerejas, cahir os braços; e ficou a olhar para mim,
com a cabeça erguida, na immobilidade de uma estatua.

Eu, que estava nos ultimos galhos da arvore, em ponto eminente, ainda
pude alcançar a estrada.

E vi, então, sahir d’uma taberna, que se abria, uma companhia de
saltimbancos.

Ia atraz um velho, vestido de malha, com lentejoulas, que relusiam ao
sol. Levava, pela mão, uma pequenita, com uma saia curta de cambraia
muito suja e remendada. O saltimbanco caminhava devagar, com a cabeça
descahida para o peito, os olhos no chão, a cantarolar:

/*
Cuidado, pajarillos,
No se despierte…
*/

Depois, quando desci os olhos para a Consuelo, que permanecia em baixo,
como estarrecida, vi-lhe á flôr das palpebras duas lagrimas enormes, que
tremiam, como duas gottas d’orvalho nas pétalas d’uma rosa!

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