AS ARRECADAS DA CASEIRA

Resa a _Folhinha_ que é a 26 de fevereiro o dia de S. Torquato–santo
guerreiro, que recebeu na face esquerda um golpe d’alfange mahometano,
em guerra de christandade;–mas a grande romaria tinha sempre logar ahi
pelo meado de junho.

Fica a ermida situada em vasta esplanada, no alto de uma collina.

Logo ao romper d’alvorada, pelos atalhos da encosta vinha subindo a
turba-multa dos romeiros foliões. Ha cinco annos, como estava um dia de
muito sol e de grande calor, era bonito ver o rancho dos lavradores, que
vinham abrigados debaixo dos enormes guarda-soes de paninho escarlate.
Aquillo é por luxo! Olha quem! Elles que andam todo o santo dia do
trabalho, no meio dos campos, a sachar, a lavrar, a podar, expostos á
torreira, teem lá medo do calor! Pois assim que chega um dia de festa,
fingem-se mimosos e abrem então os seus guarda-soes. Outros que são mais
francos, nem sequer os abrem; qual! mettem-nos debaixo do braço assim
como quem abrange um molho de varetas de baleia com paninho encarnado, e
lá partem alegres para a romaria.

No logar do arraial havia arcos de buxo com flores, fluctuavam as
bandeiras no topo dos mastros, estalavam no ar os foguetes de tres
respostas; e, de quando em quando, para que a folia não arrefecesse nos
animos, rebentava um morteiro, que atroava por todas aquellas serranias.
Então, via-se uma revoada de passarinhos, que fugiam para longe,
espavoridos pelo estrondo!

Por detraz da ermida ficava uma alameda, e era da alameda que se gosava
um panorama delicioso.

Ainda me parece que estou a ver de aqui os excellentes campos de milho
já maduro, as searas do trigo douradas do sol, e em alguns campos, como
o trigo viera temporão, e já tinha havido a sega, apparecia apenas a
resteva; dos ramos dos ulmeiros, pendiam as vides d’enforcado, e, àquem
e além, em alguma herdade de proprietario abastado, destacava-se da
ramaria escura dos castanhaes as folhas de um verde tenro e alegre das
latadas. Ao fundo, pelo corrego abaixo, seguia uma levada que ia mover
ali perto as rodas de uma azenha.

No arraial alvejavam as tendas de lona, onde se vendia o vinho verde e o
savel frito. Era ali que estava a grande animação!

–Beba um quartilho, tio José–offerecia um freguez.

–Pois venha de lá.

E então a peixeira, com os braços arremangados e farruscados da fritura,
servia um coparrão de vinho espumante.

–Vae outro?

–Nada–accudia o tio José, enxugando os beiços ás costas da mão–nada;
eu quero beber, mas a modos. Se um homem lhe bebe de mais, como o outro
que diz acaba por beber o juizo.

Como havia missa cantada e sermão, ouvia-se cá fóra a musica do côro e o
canto arrastado e nazal dos padres. Os devotos entravam e saiam
constantemente. De uma vez, á porta lateral da sachristia que deitava
para o adro, appareceu o sachristão vestido de batina escarlate com
sobrepeliz franjada de rendas, a agitar o thuribulo de prata para atear
mais o fogo do incenso! Não faltava nada!

Em meio d’aquelle povileo houve um movimento extraordinario! Os romeiros
que estavam ao longe a admirar os musicos do palanque, acudiram tambem a
ver o que se passava! Havia apertões, recuadas, empuxões e gritaria.
Formaram-se de repente duas alas de povo, para abrir uma passagem
respeitosa; e, n’isto, a berlinda da senhora morgada, que era a juiza da
festa, appareceu então, tirada por dois cavallos possantes, com criados
de libré, chapeus de tope e agaloados, rodando vagarosamente em direcção
á porta da capella. N’esse momento solemne subiu ao ar uma girandola
triumphante!

* * * * *

Quem nunca faltava á romaria de S. Torquato era a tia Custodia da Moita,
que lá ia sempre com o homem e o netinho. Ninguem havia por aquelles
arredores mais estimado e bemquisto. A sympathia que elles inspiravam
vinha de serem muito amigos do proximo, tementes a Deus e ao mesmo tempo
serem muito felizes!

Ora façam uma idéa do que elles soffreriam! Tinham tido uma unica filha,
bonita moça, amiga dos paes; mas como era muito amoravel e não podesse
ouvir chorar ninguem que não acudisse logo a consolar, deixou-se levar
pelas lamurias d’um fidalgote de Braga e…

A innocencia, a bem dizer, se não é de todo cega, trata o amor de lhe
vendar os olhos!

No fidalgo–são baldas certas!–ao cabo de um mez de apaixonados
amorios, nunca mais ninguem lhe tornou a pôr a vista em cima. A
desgraçada rapariga não teve mão em si, e confessou tudo á mãe. A
velhinha chorava, que era uma dôr de coração ouvil-a.

–Vocemecê anda doente?–perguntavam-lhe as visinhas.

–Não ando lá muito boa, não.

–Vá ter com o cirurgião, tia Custodia.

–A doença que eu tenho, filha–oppunha ella–são paixões d’alma, e não
se curam na botica!

Decorridos alguns mezes, a rapariga expirou, depois de ter deixado no
collo da mãe uma creança recem-nascida.

Ora vejam! Desgraças que acontecem!

Vae para tres annos que o mez de Dezembro foi para este pobre paiz um
mez de calamidades! Ainda toda a gente se recorda com magoa d’aqueles
dias e noites tempestuosas, em que a chuva caia copiosa e torrencial,
levantando os rios do seu leito, alagando os campos e destruindo as
sementeiras! Na manhã seguinte a uma d’essas noites terriveis, doia o
coração a quem fosse pelas aldeias e visse tantos estragos do temporal.
Uns riachos, que no verão parecem uma fita d’agua, que serve apenas de
bebedouro ao gado, tomaram taes proporções, era tão forte a sua
corrente, que levavam adiante de si as rodas dos moinhos, os telheiros,
as arvores, o gado, tudo! Era uma desolação completa! Á porta dos
curraes ficavam os pastores toda a noite de guarda com receio de que as
enxurradas lhes levassem os bois e os rebanhos. De dia, encontravam-se
os lavradores á entrada dos campos, a contemplarem pesarosos tamanhas
ruinas; e alguns, com os braços cruzados, meneando tristemente a cabeça,
exclamavam, abatidos pelo infortunio:

–Ora ahi está tanto trabalho perdido!…

Depois da chuva e das trovoadas vinham então as lufadas asperrimas do
norte. Parecia mesmo que era castigo! A ventania varejava impetuosamente
nos ramos nús do arvoredo; e, se algum sobreiro mais valente, que se
tinha arreigado mais á terra, tentava resistir, soprava de rijo um pé de
vento, arrancava-o, como se lhe mettesse pela raiz uma pá de ferro e…
derribava-o! Imagine-se o que succederia ás arvores mais tenras!

A tia Custodia da Moita trazia arrendada a quinta d’um proprietario do
Porto. Assim que chegava o mez das colheitas, a Custodia ou o marido
vestiam-se com o fato domingueiro e iam á cidade pagar a renda. E que se
não dilatassem muito tempo: quando não, era logo uma carta do senhorio
ameaçando-os de os pôr fóra. Morava elle na Reboleira, uma casa de
apparencia ordinaria, com uma escada muito ingreme, suja e pouco
allumiada. Os caseiros encontravam-o sempre a passeiar ao longo da sala,
que deitava para o rio, com as mãos enfiadas nos bolsos d’um casacão de
saragoça já velho e remendado. Até a Custodia dizia ás visinhas:

–Tão rico, o sr. Torres, e anda que nem um pobre de pedir!

O Torres era um celibatario, egoista, magro, esguio, nariz adunco, olhos
pequeninos e vivos como os de uma ave de rapina!

Depois da invernia, a primeira vez que se chegou o mez da renda é que
era vêr o Torres!

Entrou a tia Custodia, levando o netinho pela mão. Expoz ao senhorio a
sua desgraça, pedindo-lhe que por essa vez lhe perdoasse ou diminuisse a
renda.

–Adeus, minhas encommendas!–exclamava o avarento–De cantigas não como
eu! Se vocemecê não quizer, não falta por lá quem me amanhe as terras.

Para encurtar razões, a pobre mulhersinha saccou da algibeira um
embrulho, e entregou-o ao Torres. Eram dois pares de arrecadas e um
grilhão de ouro.

–Só o cordão, meu senhor,–dizia a caseira–tem quatro moedas!

O Torres observou o ouro, sopesou-o na mão; e, fechando-o n’uma gaveta,
disse:

–Pois bem! Quando me trouxer a renda, levará o penhor. Adeus! até ao
verão.

Depois que a Custodia saiu, um visinho tendeiro dizia contristado:

–A pobre de Christo até ia a chorar; e o rapazinho de vêr chorar a avó,
chorava tambem! Aquelle Torres, diabos o carreguem, é assim…

E mostrava a mão fechada, explicando:

–Um unhas de fome!

* * * * *

No anno seguinte não appareceu na romaria de S. Torquato a tia Custodia
da Moita. Coitada! Como não queria confessar ao marido que tinha
empenhado as arrecadas e o grilhão, fingiu-se doente, e não houve forças
humanas que a tirassem de casa sem o seu ouro.

–Não que o seu homem–pensava a tia Custodia–se tal soubesse, e Jesus!
era capaz de ir ter com o senhorio e fazer alguma desordem.

–O meu Joaquim?–accrescentava ella.–Boa! Tem sessenta e cinco annos;
mas aquillo para armar uma bulha parece um rapaz!…

* * * * *

_Post-scriptum_.

Agora veja-se o bom e o bonito!

Ha poucos mezes os jornaes do Porto prantearam a morte do sr. Torres,
capitalista abastado, _philantropo e respeitado por todos os
conhecidos_.

Esqueceu a confirmação das victimas, a quem elle emprestava a 28 por
cento!

Oh! mas era boa pessoa e caritativa, que até deixou o retrato á ordem do
Terço e duzentos mil reis para missas de doze vintens pela sua alma!…

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