A SÉSTA DO AVÔ

Ha quatro dias, vejo todas as tardes, quando chego á janella, o meu
visinho a passeiar em frente da casa, amparado ao braço da nétinha.

O avô é já muito velho, muito velho, com a face coberta de rugas, os
olhos pequenos, as mãos encarquilhadas, as pernas tremulas, e a
dobrarem-se nos joelhos. E a neta, que se chama Izaura, e é linda como
os amôres, tem doze annos, os cabellos loiros, como fios de ouro, e os
olhos muito azues, como duas saphiras.

Elle chama-se Macario; mas eu, quando lhe falo, dou á minha voz um tom
marcial e digo-lhe alto ao ouvido:

–Como vae o nosso bravo capitão? Como passa o meu valente capitão?

E então, na visinhança é mais conhecido pelo capitão _Feroz_, que foi a
alcunha que lhe ficou, por ter sido um militar valente e corajoso como
poucos!

Quando os francezes vieram a Portugal…–Ai!–disse-me elle um dia,
referindo-me as façanhas da guerra–quem me cassara n’aquelle tempo! Eu
tinha então desoito annos, umas pernas rijas, o ôlho fino!… Olhe, só
d’uma vez me falhou a pontaria. Eu lhe conto. No convento de Santa
Clara, de Thomar, estava recolhida uma menina, de que eu gostava muito e
com a qual depois casei. Um official francez, passando-lhe debaixo da
grade, disse-lhe um galanteio, e piscou-lhe o ôlho direito. Ora eu, que
estava ao longe a observar tudo, disse commigo: espera, que já
t’arranjo. E metti a espingarda á cara, fiz pontaria para o ôlho direito
do francez, e…

–E?

–E, truz! metti-lhe a bala no ôlho esquerdo! Errei d’essa vez!

E ainda lhe fulguravam os olhos e o rosto se lhe illuminava, quando
contava d’estas coisas.

Depois proseguiu:

–A final, chegou-me a vez de ser vencido! Eu, que nunca tremi na
guerra, a primeira vez que falei á minha santa, que Deus tenha, dei em
tremer como varas verdes! Mas aquillo sim! Era formosa d’uma vez! O
senhor vê a minha filha! É a cara da mãe.

O capitão não se enganava. A filha era realmente formosa; mas duma
formosura, que é menos dos contornos do rosto, do que da graça interior
da alma.

Havia um anno que era viuva d’um industrial trabalhador, honesto e
intelligente. Ficára a viver na companhia do pae e com dois filhos:–a
Izaura, e o mais pequenino, o Abel, que tinha pouco mais d’um anno e uma
cabecinha loira de cherubim.

Que santa vida a d’aquella familia obscura!

A viuva repartia pelos tres todo o generoso affecto do seu coração; e,
até, como o pae era tão velhinho, quasi que já carecia dos cuidados
d’uma creança. Que os bons velhos, coitadinhos! são faceis de contentar!
Basta-lhes uma restea de sol, uns carinhos de filha e umas historias da
neta!

Quando perguntei ao Macario, porque passeiava depois do jantar,
respondeu-me:

–O somno é bom para a noite. Quando durmo depois de jantar, tenho
sonhos maus.

E, beijando a cabeça de Izaura, accrescentou:

–Quero antes passeiar com a minha neta, que me conta historias muito
lindas.

E continuaram os dois, o velho pelo braço de Izaura, arrastando
vagarosamente os pés nas lagens do passeio.

* * * * *

Depois do jantar, o velho arrastava-se até á poltrona, que tinha ao
canto da janella; e, bem refastellado, com os pés estendidos, as mãos
cruzadas sobre o ventre e a cabeça encostada no espaldar, dormia
patriarchalmente a boa sonata da sésta.

De uma vez, era em julho, e, ás duas horas da tarde, fazia um calor
insupportavel. Até parece que a natureza tambem dormia a sésta! Lá fóra,
no quinteiro, as folhas das arvores pendiam desfallecidas. Ouvia-se o
murmurio monotono da bica d’agua a cahir, como uma lagrima, sobre uma
pia de pedra, debaixo d’uma latada. As portas das janellas estavam
entre-abertas para deixar entrar na sala uma fita de sol, que se
estendia aos pés do velhinho, como uma esteira de luz.

No outro canto da sala, a filha do capitão, sentada n’uma cadeirinha de
pau, pospontava uma camisa de creança, mas tão pequenina, que parecia
uma camisa de boneca! Ouviam-se até uns pequenos estalidos secos da
agulha, atravessando a gomma do morim novo e em folha. O Abel!… Era um
regalo vel-o sentado no chão, em camisa, com as pernas roliças á mostra,
um ventre redondinho de abbade feliz, e os pésinhos côr de rosa!

Aos pés do avô, na restea do sol, tremia a sombra d’umas folhas do
platano do jardim. A creança engatinhou para lá. Como uma pequenina
féra, atirando-se de golpe sobre a presa, o Abel lançou-se rapidamente
sobre a sombra tremula das folhas; mas–que ludibrio!–ficou triste,
espantado, com os olhos muito abertos, a contemplar a palma da mão
vasia!

Ao lado estavam os grandes pés do avô, mettidos nos dois grandes
chinellos de tapete. Oh! eram duas colinas! E as pernas? As pernas
pareciam dois enormes castellos roqueiros.

No espirito bellicoso da creança surgiu a ideia terrivel de os assaltar.
Fincou as mãositas nos chinellos do avô, levantou-se valentemente nos
pés, e upa! upa! arriba!

N’essa occasião o velho sonhava:

Tinha remoçado cincoenta annos! Os francezes invadiam Portugal! Quando
elle estava na tenda de campanha, a dormir no dia seguinte ao de uma
batalha, viu entrar inesperadamente o exercito de Bonaparte. As paredes
de lôna da tenda iam recuando, recuando, para dar entrada ás hostes
immensas do inimigo. Os esquadrões insoffridos da cavallaria corriam
sobre elle. Em volta da tenda levantou-se rapidamente–como nas magicas
do theatro!–uma bateria, com as boccas dos canhões apontadas para o
leito. Os piquetes de infanteria corriam a marche-marche, de bayonetas
caladas, para o surprehenderem no somno. Ao fundo, no viso de um
outeiro, Bonaparte, o terrivel Bonaparte, com as suas botas de escudeiro
e o seu chapeu de bicos posto de travez, como o chapeu de um estudante
de Salamanca, assestava sobre elle o oculo de alcance, sorrindo
alegremente da victoria!

O capitão Macario via tudo aquillo, ouvia o estrepito dos cavallos, o
tropido da infanteria, as gargalhadas de Bonaparte, e sentia-se preso ao
leito, impotente, inerme, anciado, sem poder gritar!… Façam ideia!

De repente, todo aquelle exercito enorme se transformou n’um gigante,
que lhe prendeu brutalmente as pernas com dois grilhões de ferro!

O capitão esforçou-se ainda por se levantar; mas conseguiu, apenas,
depois de muito custo, soltar este brado afflictivo, com uma voz
convulsa:

–Ás armas!

E despertou, ouvindo as gargalhadas de… Bonaparte!

O velho abriu desmesuradamente os olhos, volveu-os espantado em torno de
si; e, quando um instante depois, se sentiu completamente acordado, deu
com o nétinho, que lhe puxava pelas pernas, para lhe subir ao collo!

A creancinha estava com os olhos levantados para o avô, a sorrir, muito
alegre, porque julgou que tinha sido para ella, como brincadeira,
aquelle grito suffocado–_Ás armas_!

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