Logo abaixo dos açudes, ficava de uma banda do rio a azenha do Euzebio
moleiro, e da margem opposta, um pouco mais abaixo, a azenha do tio
Anselmo.
Eram dous velhotes viuvos, de bons sessenta annos, e amigos desde
creanças. Para contradicção do anexim popular, estes dois moleiros
queriam-se como dois irmãos, a despeito de serem do mesmo officio.
Parece que o rio, n’aquelle sitio, era até mais pittoresco! Por detraz
das azenhas descia a enfesta de uma cerrada deveza de carvalhos e
sobreiros, com o atalho aberto ao meio, que era por onde seguiam os
machos carregados com os taleigos da fornada. Mesmo á ourela havia
alguns amieiros e choupos, que se debruçavam sobre o rio. As aguas
cahidas nos açudes, vinham costeando uma gandara, escondiam-se em meio
de um canavial, e surgiam depois mais limpidas até ás rodas do moinho,
que as marulhavam e batiam constantemente.
No verão, quando a levada era minguada, os dois velhotes visitavam-se a
miudo, atravessando destemidamente pelas poldras; mas, quando as chuvas
do outomno principiavam a tornar o rio caudaloso, limitavam-se então a
falar d’um lado para o outro. Era triste! Já tão velhotes! E depois
dizia o Euzebio:
–Anselmo, fala mais alto, que te não oiço.
–O que é?–perguntava o outro, inclinando o pavilhão da orelha.
O Euzebio fazia um porta-voz com as mãos, e gritava:
–Não te intendo.
Quando chegavam a falar, concordavam sempre que era o barulho das rodas
do moinho, que os não deixava ouvir. Isso sim! Era o peso dos annos que
os tinha quasi surdos de todo. Pobres velhos!
O Euzebio tinha um filho, que era um rapagão de vinte e dois annos, como
um castello! Ainda o dia vinha longe, já elle estava a trabalhar, que
era um regalo a gente vel-o.
–Lida como um moiro!–diziam os conhecidos.
E se havia esfolhada, ou espadellada, quem lá não faltava era elle.
O pae, que, n’outros tempos, tinha sido um folião, dizia-lhe, á bôcca da
noite:
–Simão, se tens de ir a algures, parte, que eu cá fico, para aviar os
freguezes.
–Estava arranjado!–respondia o moço a rir.–Vocemecê já deu o que
tinha a dar. Agora coma e beba, e deixe-me cá com a vida!
Primeiro que tudo estava a sua obrigação. O rapaz assim que não tinha
mais freguezes a aviar, fechava a ucha do moinho, e partia então para a
brincadeira.
E o velhote do pae, quando alguem lhe contava as diabruras do filho,
parece que até a alma se lhe ria na menina dos olhos.
O Anselmo tinha uma filha. Chamava-se ella Margarida, e era formosa,
d’aquella formusura campesinha, sem artificio, jovial e expansiva. Em
dotes do coração–que é a principal belleza!–nem as mais virtuosas a
excediam.
Desde pequenina foi Margarida creada com Simão. Se não ficasse mal
estabelecer agora parallelos já sabidos e repetidos, estava em dizer que
os dois se queriam e estimavam como _Paulo_ e _Virginia_.
Quando os quinze annos de Margarida, que era mais nova dois do que
Simão, vieram pôr termo aos brinquedos d’infancia, então principiou elle
a olhal-a com aquelle respeito com que se olha para uma irmã mais velha.
Mas vá-se desde já sabendo que esse respeito não estorvava, antes
acrysolava um outro sentimento, que principiava a exercer e a avultar no
generoso coração do rapaz.
Margarida, quando Simão lhe falava na sua tristeza e no seu amor,
fingia-se contrariada, carregava o sobr’olho e mudava de conversa.
D’estas esquivanças repetidas ateou-se o fogo da paixão na alma do
moleiro.
–Margarida–dizia-lhe elle d’uma vez–se não quizeres casar comigo, hei
de morrer solteiro.
–Não te faltam mulheres, Simão.
–E se te vejo ser d’outro–protestava o rapaz com as lagrimas nos
olhos–não sei que faça, que me não mate.
E Margarida era tão cruel, que assim despresasse o seu amigo e
companheiro d’infancia?!
Nós veremos já até onde vae a dedicação de uma mulher.
* * * * *
Isto passava-se no tempo em que se guerreavam os partidos de D. Pedro e
de D. Miguel.
Quando ás aldeias chegavam noticias aterradoras, as mães estremeciam ao
contemplar os filhos afadigados na lavoura.
–De mortos nem a conta se sabe!–diziam os mensageiros. Vae por ahi _a_
fim do mundo!
–Jesus, Senhor! E então diz que é guerra d’irmão contra irmão!
Valha-nos Deus!
De uma vez, oito soldados e um furriel pararam á porta da azenha do
Euzebio. Passado um instante, a gente da aldeia chorava com brados
afflictivos, vendo o Simão do moleiro atravessar no meio da escolta com
os braços presos, como um degredado! O velho, assim que lhe arrebataram
o filho, ainda tentou abraçal-o; mas–coitadinho!–como já lhe custava a
andar, quando chegou á porta, ia o rapaz a subir a encosta.
Aos gritos da visinhança acudiu Margarida ao postigo da azenha.
Perguntou o que tinha acontecido da outra banda; e, quando lhe disseram
que o Simão tinha sido levado para a guerra, a pobre rapariga soltou um
grito agonisante e cahiu desfallecida nos braços do pae.
As aguas tinham engrossado com as ultimas chuvas, e os dois velhos,
quando se avistavam de longe, desatavam a chorar, como duas creancinhas!
Decorridos oito dias, a gente da aldeia acordou sobresaltada com o
tiroteio, com o rufo das caixas e o som dos clarins. Feria-se uma
batalha a pequena distancia.
Quando a tropa alli passou, todos viram o Simão moleiro, que parecia
outro! Ia magro, esfalfado, com os sapatos rotos, coberto de pó, a
espingarda ao hombro, a mochila ás costas e a chorar! Ao passar rente
das casas ia saudando os conhecidos, e dizia ás raparigas que pedissem a
Deus por elle.
Sahiu do povoado sem ter visto o pae nem Margarida. Levava o coração
retalhado!
Assim que a filha do Anselmo o soube, quiz logo ir ter aonde podesse
falar-lhe.
–Isso, Deus te livre!–disse-lhe do lado uma visinha.–Se lá vaes, lá
ficas! E, de mais a mais, teres de falar com soldados! credo!
–Lá isso–atalhou a moça–tambem o Simão é soldado, tia Joaquina!
Ao fim da tarde principiaram a chegar as ambulancias dos mortos e
feridos. Vinham apinhados, uns com as cabeças ligadas, com as faces
empastadas de sangue, outros com os braços ao peito, mutilados, outros
com as pernas partidas, quasi todos moribundos!
Nunca se tinha visto uma cousa assim! Aos gemidos dos feridos reuniam-se
os clamores da gente que se agglomerava para os vêr. Destacavam-se
algumas phrases das ambulancias:
–Ai! minha pobre mãe!
–Ai! meus ricos filhos!
E as mulheres, quando isto ouviam, de cada vez choravam mais.
Alguem d’entre o povo ouviu gemer de uma das carretas da ambulancia:
–Meu… pae! Marga… rida! Eu morro!
E viu-se que um dos feridos, que ia reclinado, deixou pender a cabeça
sobre o peito, e descahir um braço fóra do carro.
Os artilheiros que levavam pela camba dos freios os cavallos
insoffridos, voltaram-se para uma formosa rapariga que os interrogava
afflicta. O retinir das molas da carreta, rodando nas lagens irregulares
de uma vereda, não os deixou ouvir. Mas, de repente, a moça aproximou-se
mais de um carro, pegou no braço que bambaleava, estendido fóra da
ambulancia, á mercê dos solavancos, reparou attentamente n’um annel que
o morto levava, e principiou a gritar:
–O Simão! Morreu! morreu!
E debatia-se angustiada nos braços das amigas que a seguravam.
Quando um visinho entrou na azenha do Euzebio, para lhe dar a noticia da
morte do filho, encontrou o moleiro sentado na ilharga da cama, a resar,
com os olhos postos n’um crucifixo, e um rosarío entre os dedos.
–Rese-lhe por alma!–disse o visinho a chorar.
O velhote, que estava muito mais surdo, ergueu-se, e perguntou
espantado:
–O que é?–e applicou os quatro dedos da mão direita ao ouvido
correspondente.
–Morreu!–gritou-lhe o outro.
O Euzebio empallideceu subitamente, aprumou-se, fitou os olhos no
visinho; e, sem pestanejar, dirigiu-se apressadamente á cabeceira da
cama, e tirou detraz uma espingarda.
–Isso para que é, tio Euzebio?–perguntou-lhe o outro ao ouvido.
–Vou matal-os!–respondeu o moleiro com uma voz convulsa.–Vou
matal-os!
Mas quando ia, com a espingarda ao hombro, a transpôr a soleira da
porta, cambaleou, e cahiu fulminado para a outra banda…
Na madrugada do dia seguinte, um moço de lavoura chegou afflicto a casa,
a esbofar, dizendo que, pouco abaixo da azenha, vira um corpo de mulher
levado na corrente do rio, a fugir, a fugir!…
* * * * *
Ainda conheci, ha muitos annos, o pae de Margarida.
Era por uma formosa manhã de abril.
O velho estava fóra da azenha, sentado n’uma cadeira de entrevado, com
os pés estendidos a uma restea de sol. Em volta d’elle, chilreavam os
passarinhos na ramaria frondente do arvoredo.
Referia-me, ao certo, a morte do Simão e do seu amigo Euzebio; e,
depois, quando chegava ao lance de ter perdido a filha, voltava a cabeça
para o rio, e perguntava baixo, de si para si:
–E a Margarida?!…
E ficava como mentecapto, com os olhos turvos a contemplar as aguas do
rio, que derivavam mansamente entre os salgueiros!